Duas semanas de Democracia
O pronunciamento da presidente Dilma Rousseff concluiu na minha visão um arco dos acontecimentos que se iniciaram há cerca de duas semanas com as primeiras manifestações pelas ruas. Não acabou o espetáculo: foi o fim do primeiro ato, que nos dá chance para refletir antes das próximas cenas.
Entre um delírio e outro, sabemos que continuamos numa democracia, e que a chefe do Executivo nacional foi eleita com maioria de votos e está cumprindo seu mandato conforme a legalidade. Considerar a deposição de Dilma Rousseff seria uma postura golpista que apenas atrasaria a maturidade de nossa democracia, que tem muito a crescer e não pode retornar à gangorra de ditaduras que foi o século XX.
Assim, se discordamos de alguma política da presidente, temos duas opções: esperar as próximas eleições para retirá-la do posto ou nos manifestarmos ostensivamente.
Desta vez, as pessoas resolveram se manifestar. No meio de tantos debates controversos sobre a qualidade de seu governo — os articulistas políticos estão por aí com suas alegações favoráveis ou contrárias às realizações da presidente —, o povo vive o escândalo diário de hospitais e escolas que não parecem refletir a tempo a relativa prosperidade econômica e a queda do desemprego no Brasil. Coincidência ou não, justamente neste momento começou a Copa das Confederações, com o lançamento de estádios bilionários e de alto padrão, justificando os cartazes de “Queremos hospitais padrão Fifa”.
E, neste ponto, a resposta da presidente foi adequada: o Executivo está ouvindo. O Executivo compreendeu que precisa realizar atitudes mais rápidas e expressivas em relação aos clamores mais fundamentais. Demonstrou que entende que as manifestações continuarão se essas atitudes não forem tomadas — e chamará governadores e prefeitos, porque as responsabilidades são mais compartilhadas do que supõem aqueles que veem no chefe de Estado um monarca culpado por tudo.
Esse é o ponto mais positivo: na minha visão, isso é simplesmente a democracia funcionando. Em teoria, a democracia representativa é o sistema mais prático: elegemos as pessoas que, acreditamos, tomarão as providências que desejamos.
Em alguns momentos, porém, isso não parece funcionar totalmente bem. Começamos a perder a confiança mesmo nos nomes em que chegamos a acreditar. É então que somente uma massa pode ter alguma voz.
O precursor dessas manifestações foi o Movimento Passe Livre de São Paulo, que, como no provérbio antigo, atirou no que viu e acertou o que não viu. Considerada isoladamente, a demanda pela revogação do aumento das passagens na capital paulista não era consistente. O prefeito Haddad afirmou que sua promessa de campanha havia sido aumentar o preço da passagem abaixo da inflação, e isso ele cumpriu.
A diferença de 20 centavos era tão reconhecidamente irrisória que, com a ampliação dos manifestos, tornou-se onipresente a alegação de que “não é só por 20 centavos”.
A proposta inicial de que os protestos fossem apartidários tinha sentido. A presidente do País e o prefeito de São Paulo são do PT, mas o governador Geraldo Alckmin, que controla o metrô, é do PSDB, e uma multiplicidade de partidos está à frente dos estados e municípios.
Não à toa, Alckmin e Haddad apareceram juntos, numa ação portanto apartidária, para anunciar que voltaram atrás no aumento do metrô e do ônibus. Uma vitória política do Movimento Passe Livre, que os dois procuraram enfatizar publicamente que se tratava de uma derrota técnica da gestão, pois teriam de retirar verbas de outros investimentos para subsidiar o transporte. Provavelmente estão corretos, porém isso mostra como a democracia é forte e que os governantes podem acabar sendo compelidos a cometer pequenos erros se não se preocupam previamente em providenciar grandes acertos.
O crescimento das manifestações estava num processo inercial incontrolável que não foi contido pela redução do valor das passagens, ocorrida em muitos outros lugares além de São Paulo. E foi nesse momento que o apartidarismo começou a incomodar os manifestantes mais politizados. Houve o susto de que ativistas antidemocráticos pudessem sequestrar a pauta de reivindicações. Aconteceram tensões internas nas passeatas, com casos de agressões a pessoas trajando vermelho.
Não se pode chegar ao ponto de haver um antipartidarismo, pois isso é um atentado à democracia. Por isso o próprio Movimento Passe Livre anunciou sua retirada das manifestações.
Algumas más impressões causadas por Dilma Rousseff em seu pronunciamento parecem se dever a determinadas expectativas pessoais dos ouvintes. A presidente leu um longo texto, de forma bastante mecânica. Na seriedade da situação, porém, não se poderia esperar que ela falasse de improviso. E, com os ânimos tão exaltados, é claro que ela procuraria se expressar com serenidade.
Estava muito cansada, alguns notaram abatimento, mas certamente ela não animou aqueles que esperavam que ela acusasse o “golpe”…
A crítica mais consistente é sobre o que ela falou da Copa do Mundo. Afirmou que o dinheiro gasto nas arenas é “financiamento que será devidamente pago pelas empresas e governos”. Se era para dizer isso, acredito que precisaria ter desenvolvido melhor, pois não é desta maneira que o tema chegou à população. Além disso, se governos estaduais terão de pagar, isso ainda é dinheiro público.
Seja como for, a realização da Copa do Mundo é uma obrigação contratual da qual o País não pode mais se esquivar — teria sido melhor ela dizer isso do que nos lembrar de que somos pentacampeões. Atrapalhar a Copa do Mundo ou mesmo a Copa das Confederações já em andamento causará mais prejuízos. O dinheiro dos estádios já foi gasto. Uma demanda racional agora é exigir transparência total sobre os custos e fazer o possível para que o evento traga todos os benefícios possíveis, mesmo que a essa altura eles se revelem abaixo do investimento feito.
Alguns identificaram cinismo na afirmação da presidente de que pretende receber as lideranças dos protestos pacíficos. Afinal, quem seriam? Mas na verdade existem líderes relevantes de organizações da sociedade e, além disso, pode-se entender que Dilma Rousseff está sensível até a manifestações que ainda não ocorreram.
As redes sociais estão tendo um papel definitivamente positivo no processo. Apesar de serem uma babel de anseios e ódios, elas permitem tanta interação entre tantos atores que mesmo uma manifestação inerentemente confusa que emana de tantas multidões acaba se tornando mais rapidamente decodificável. É uma ferramenta da democracia que chegou para ficar, para ser a espada de morte dos que tentam ser donos da verdade.
Ao contrário da fera da internet com suas mil opiniões, a grande mídia e suas agendas estanques ficaram à deriva no período, demonstrando menos controle da situação do que se supõe. Jabor falou e depois desfalou. A capa da Veja foi surpreendentemente neutra. O Cidade Alerta elogiou as manifestações, mas no dia seguinte um carro da Record foi queimado. Depois de serem hostilizados, repórteres da Globo saíram às ruas sem o cubo de identificação da emissora, que chegou a cancelar capítulos de novelas para mostrar os protestos. Como se pode esperar de uma multidão que agregou tantas forças, ela foi imprevisível e, portanto, exigiu tato para ser mencionada. Se isso não for, por si só, um fenômeno diferente e bastante positivo, então temos de aproveitar a oportunidade para fazê-lo assim.
Ficaremos agora, como cidadãos cada vez mais conectados, aguardando que as medidas anunciadas pela presidente se realizem nas próximas semanas. Ela fez promessas. Vamos aguardar o Plano Nacional de Mobilidade Urbana. Vamos observar suas reuniões com governadores e prefeitos e esperar pelos resultados do “grande pacto em torno da melhoria dos serviços públicos”. Vamos verificar se, afinal, haverá um sentido na expressão “reforma política”.
O povo deu as cartas nesse primeiro ato. Espero que os governantes abracem o protagonismo no segundo, que está para começar, e ajam como mocinhos da história. Senão o povo volta para o terceiro, e com menos paciência.