domingo, 10 de fevereiro de 2008

Contra uma parábola moderna


Recebi uma vez uma dessas parábolas que correm a internet, uma historinha "significativa" (e em geral "edificante"), e guardei, porque ela me intrigou. Finalmente resolvi escrever contra ela. Não é que eu não goste de mensagens edificantes. Gosto até muito. O que eu não gosto é de histórias que induzem a uma moralidade controversa. Mas vamos primeiro à historinha, depois aos meus comentários.

É a história de uma certa Karina, apaixonada pela dança e pelo Ballet Bolshoi. Só pensava nisso, etc. "Um dia, Karina teve sua grande chance", diz o texto original da parábola. Foi participar de uma seleção de aspirantes à companhia. Empenhou-se ao máximo no teste e em seguida perguntou ao respeitado diretor se ela poderia se tornar uma grande bailarina. O homem respondeu que não. Ela, portanto, desistiu de seu sonho, tornou-se professora de ballet e, muitos anos depois, foi assistir a uma apresentação do Bolshoi. Criou coragem para ir conversar com seu algoz, depois do espetáculo, e disse a ele o quanto doera aquele "não" que ouvira dele. Aí é o momento máximo da história. "Mas eu digo isso a todas as aspirantes." Karina ficou revoltada, surpresa, etc., reclamou de que foi injustiçada por ele. E então o diretor responde com a moral da história: "Perdoe-me, mas você nunca poderia ter sido grande o suficiente, se foi capaz de abandonar o seu sonho pela opinião de outra pessoa".

É só uma história. Mas não é apenas uma história: é construída para erigir uma moralidade. O que é irracional é a pretensa universalidade da moral indicada.

Há muitas maneiras de contestar a moral dessa história. Vou experimentar a seguinte. Perceba que, no momento em que ela pergunta se poderia se tornar uma grande bailarina, ela e o diretor não falam a mesma língua. Ela não está pedindo que sua "vontade" seja desafiada. O que ela quer é uma avaliação técnica de um especialista.

Se o diretor diz "não" a todas as aspirantes, por que deveríamos considerar que ele está agindo como um sábio? As pessoas são muito diferentes, e ele está tratando todas da mesma maneira.

Existe a falsa crença moderna de que, "com vontade", podemos ser o que quisermos. Então aparece o exemplo do paraplégico que venceu na vida como pintor, como professor, como prêmio Nobel de economia. Sem dúvida, pessoas paraplégicas podem se tornar grandes vencedores em inúmeras áreas. Mas eles não podem ser jogadores de futebol. E não apenas os paraplégicos: existem incontáveis pessoas que não têm o talento necessário para se tornarem bons jogadores de futebol, por mais que insistam. Pense que pode haver milhares de pessoas que se empenharam tanto quanto o Gustavo Kuerten para se aprimorar no tênis. Ele chegou a ser número 1 do mundo nesse esporte porque, além do empenho, ele tem o talento. É necessário talento e empenho.

É estranho que esse "sábio diretor" acredite que o empenho baste. Agindo dessa forma, ele está apenas desmerecendo a própria técnica de sua arte.

Mas é evidente que eu não acredito que um diretor do Bolshoi tenha realmente protagonizado essa peripécia. Tudo isso não passará de uma historinha, inventada para promover uma moralidade de gosto duvidoso.

1 comentários :

  1. Anônimo disse...

    Sua análise chegou à essência da questão... dificilmente alguém percebe detalhes como esse.
    Como disse, ao ler seus textos sempre tenho a sensação de aprender algo novo e profundo. E vc desvenda esses detalhes em exposições claras, simples, elegantes e despretenciosas.
    Fora de série...
    E.v.