segunda-feira, 13 de julho de 2009

Sobre o bárbaro atropelamento de um cidadão

Tento obedecer ao dever de não me revoltar. A notícia passa mais rápido que os homens. Hoje é mais um dia em que não vou me revoltar com o que existe de mau. Tomei meu remédio, comi meu chocolate e estou feliz. Lágrimas nos olhos não importam.

Meu dever é achar nele algo de bom, de purificado ou purificável. Senão amanhã deixarei de me calar. E, se eu não me calar, irei sofrer por todas as injustiças.

Não sei quem é ele. Matou um rapaz e a polícia o procura, é tudo que sei. Desculpem-me se, diante do fato, apenas me sento e escrevo. Mas não sei gritar como deveria. Só sei escrever brandamente, desculpem. Ele matou um rapaz e minhas palavras parecem um passeio no parque.

Mas como eu poderia gritar de revolta? Não fui eu que matou o rapaz. Foi ele. E não sei quem ele é, nem a polícia sabe. Sabe que estava num carro, que era noite, e que ele estava inconformado por terem arranhado o seu carro. Então ele condenou um rapaz na rua. Acelerou, atropelou, matou.

Mas não tenho também eu a minha fúria? Por exemplo, neste instante, será que eu não aceleraria para também matá-lo?

Escrever é um narcótico. Em alguns minutos, estarei clicando aqui e ali novamente, agora para as notícias boas, as fotos alegres, as cenas curiosas, a tela me trazendo melhores ares.

Não escrevam. Se querem ser cidadãos atuantes, pensem, mas não escrevam. Escrever é além de pensar: reorganiza o mundo e não há mais caos. A morte do jovem rapaz, que ia ser pai, dilui-se num panorama imenso, que inclui todas as tragédias. Se um acidente nos choca e nos entristece, por que a brutalidade deveria nos revoltar? — é o que pensa o pobre coitado que, a par de pensar, escreve. O que é um assassino imbecil senão um acidente, uma fração da realidade, um títere do caos?

Ele próprio, ao recordar a noite embriagado, ao ler também sobre a morte que causou, irá esquecer? Mas estamos em 2009: é tarde para outro romance sobre culpa e autocomiseração. É tarde também para um romance da indiferença: a história mais antiga é do irmão que matou o irmão e se regozijou.

Este é o resultado de escrever. Tudo é velho e nada mais é chocante. Ou melhor: “não há nada de novo”, como disse alguém há três mil anos. O cidadão melhor que eu, aquele que pensou e não escreveu, diria que “perdemos o poder de nos indignar”. Não perdemos. A humanidade se alfabetizou. Assassinos leem e retiram licença para dirigir. Alfabetizados, escrevemos e, escrevendo, sabemos: tinha que ser assim. “Estava escrito.”

Não. Estará escrito. E então aceitaremos.

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