Fazia tempo que Reparação estava na minha estante, à espera de leitura. Nem a bem-sucedida adaptação para o cinema, de 2007, me levou a enfrentá-lo — aliás, também não vi o filme, que o incansável despreparo e mau gosto dos marketeiros nacionais chamou de Desejo e reparação. Foi necessário que a amiga Heloísa Schiavo twitasse maravilhas para que eu transformasse a desconfiança em curiosidade.
São 450 páginas, afinal. Coisa um tanto século 19 para meu gosto — e nem o inigualável Machado de Assis achava de preencher tantas laudas, ele que era conciso e brilhante em cada linha.
Mas gostei muito!
De forma um tanto intrigante, o romance me lembrou o filme Adaptação, do roteirista Charlie Kaufman. O narrador do romance, explorando o pensamento dos personagens, desenvolve uma teoria estética da literatura que ironiza seus próprios recursos: num certo ponto, por exemplo, a aprendiz de escritora Briony “sabe” que não interessa mais o enredo, e sim o “fluxo de pensamento”; porém a história em Reparação é fascinante, movimentada e atraente.
A construção do autor é eclética. É intensa sua variedade temática: a vida por um lado plácida de uma família de classe alta no campo; os transtornos da relação entre parentes; o sangue enlameado da guerra, o terror massacrante das enfermarias com seus feridos; a cultura e a religião, a política e a sociedade, a literatura e a estética. Um passeio que nos preenche de recordações.
"Alguém entrou." Robbie abriu os olhos. Estava numa biblioteca, numa casa, imersa num silêncio completo. Trajava seu melhor terno. Sim, tudo lhe voltou à mente com relativa facilidade. Forçou a vista, olhando por cima do ombro de Cecilia, e viu apenas a escrivaninha fracamente iluminada, tal como antes, como se a tivesse visto num sonho. De onde estavam, naquele canto, não era possível ver a porta. Mas não se ouvia nada, absolutamente nada. Ela se enganara, ele desejava desesperadamente que ela estivesse enganada; estava, sim. Virou-se para ela e ia dizer-lhe isso quando sentiu um aperto mais forte em seu braço, que o fez olhar para trás mais uma vez. Briony lentamente entrou em seu campo de visão, parou ao lado da escrivaninha e os viu. Ficou parada, apatetada, olhando para eles, os braços caídos ao longo do corpo, como um pistoleiro numa cena de duelo num western. Naquele instante de desencantamento ele se deu conta de que jamais odiara uma pessoa até aquele momento. Era um sentimento tão puro quanto o amor, porém desapaixonado e friamente racional. Não havia nada de pessoal nele, pois teria odiado qualquer pessoa que entrasse. Estavam servindo bebidas na sala de estar e no terraço, e era lá que Briony deveria estar — com a mãe, o irmão que ela adorava e os priminhos. Não havia nenhum motivo razoável para ela estar na biblioteca, senão o propósito de encontrá-lo e negar-lhe o que era seu. Ele entendeu esse fato com clareza, sabia como havia acontecido: ela abrira um envelope fechado, lera seu bilhete e ficara enojada, e de algum modo obscuro sentira-se traída. Viera procurando pela irmã — sem dúvida movida por uma idéia grandiosa de protegê-la, ou de admoestá-la, e ouvira um ruído vindo de dentro da biblioteca fechada. Impelida pela profundeza de sua própria ignorância, imaginação pueril e retidão de menina, entrara para interrompê-lo. E nem foi preciso fazer nada — espontaneamente, eles dois já haviam se separado e virado cada um para um lado, e agora ajeitavam discretamente suas roupas. Terminara.