Atualizações neste meu blog têm uma periodicidade larga — e tornou-se ainda mais demorada pelo fato de eu ter me mudado recentemente, o que significa muito tempo usado (não digo “perdido”) para encaixotamento e rearrumações.
A vantagem desse processo, além de jogar uma tonelada de tralha fora, é poder reencontrar algumas coisas do passado.
Há 12 anos escrevi sobre o filme Show de Truman e enviei para amigos e conhecidos por e-mail. Republico o texto aqui. O que me agrada nele é a reflexão sobre o “determinismo”, tema que tem me mobilizado bastante ao escrever, nesses anos todos.
TRUMAN SHOW
17/maio/1999
O show de Truman, filme dirigido por Peter Weir, será lançado brevemente em vídeo. Não o mandarei vê-lo (se não o viu) — afinal, não mando em ninguém. Ressalvo o caráter standard de sua produção, afora ainda algumas inconsistências mais brutais (a esposa como verdadeira prostituta full time e a tentativa de Christof de convencer Truman a voltar para o mundo no qual ele não acreditaria mais e em que, por isso, a novela não seria mais possível). Mas aludo a seu conteúdo, ou ao que se pode refletir a partir de seu enredo.
Truman é o símbolo do homem em um mundo determinista — problema metafísico ainda aberto. O filósofo Boécio defendeu com garra o livre-arbítrio: tentou mostrar que a presciência dos fatos futuros não é causa dos mesmos fatos, rechaçando o determinismo baseado no argumento de que, uma vez que Deus conhece o futuro, conseqüentemente ele seria predeterminado. Spinoza, por sua vez, considera Deus algo muito diferente ("é a totalidade do Universo") e diz que o livre-arbítrio é apenas uma ilusão dos homens, que não conhecem a real causa de seus atos. No filme, Truman foi colocado num ambiente determinista artificial. E devemos perceber que, se o mundo natural é determinista, vivemos como Truman. E, como Truman, sem saber disso.
Mas Truman desconfia de algo e passa a investigar. O remoto observador que um dia notou a circularidade no movimento dos astros previu um eclipse e pode ter julgado que, por inevitável, era um evento determinado. Truman notou, em torno de seu quarteirão, um movimento regular de fuscas e entregadores de flores. Mas ele — como ocorreria a muitos de nós — abomina a situação e quer salvar-se do determinismo. Como no filme esse ambiente é artificial, sabemos que ele tem uma chance, em especial por sua louca vontade de ir a Fiji.
Truman realmente foge do determinismo? Imagine o filme “Show de Truman II”, em que o espectador venha perceber que, ao sair da verdadeira “cidade cenográfica” em que vivia, Truman caísse, não no “mundo real”, mas numa segunda “cidade cenográfica” que englobasse a primeira, imensamente maior, onde Truman se creria de vontade livre, mas na qual a novela teria sua continuação. Não precisamos de “Truman II”. Poderíamos imaginar infinitas “cidades cenográficas”, e Truman não teria tempo — e, num momento, forças — para continuar escapando delas, como um “herói do livre-arbítrio”. É o que acontece conosco: não podemos romper os limites da física e da metafísica para saber o que se passa fora da nossa “cidade cenográfica” e como esse “exterior” interfere em nossos destinos. Ainda que o roteirista Andrew Niccol não tenha tido tal “intenção”, tanto é certo que o filme diz isso, que um determinista convicto acharia muita graça da alegria da platéia ao final do filme.
Na filosofia, a polêmica entre determinismo e livre-arbítrio, bastante antiga, é ainda menos antiga que promissora. O filme, que pretendeu tão-somente divertir alguns milhões de cérebros (mais os descansando que os espicaçando, afirme-se), levantou a questão, lá no alto, bola de vôlei acima da rede — quem, porém, poderá cortá-la?
Recomenda o filme o fato fugaz de não ter sido agraciado com aquela estatueta pífia.