J. M. Coetzee
Durante quatro dias de férias num chalé de praia quase deserta, li o romance Desonra, de J. M. Coetzee. De volta à civilização, comprei Diário de um ano ruim, lançamento recente do mesmo autor.
Ainda não o li. Mas uma primeira diferença fica explícita. O romance que li foi escrito quatro anos antes de o autor faturar o Prêmio Nobel, o que aconteceu em 2003. Em Diário..., de 2007, Coetzee se pôs à vontade e desenhou uma página diferente. Pelo que pude depreender ao folhear, há um ensaio histórico e político na parte de cima e um enredo na parte de baixo.
Não se pode omitir que, em termos formais, não há nisso novidade nem experimentação. Que eu saiba, Cortázar fez o mesmo em O jogo da amarelinha, e Ignácio de Loyola Brandão foi até mais anárquico em Zero. Também cheguei a folhear romances diletantes com semelhante distribuição. Ou seja, a coisa pegou.
Assim mesmo, pela parte do "ensaio", me pareceu interessante e resolvi encarar. Ainda é possível criar belas obras sem "inovação formal". Mas aqui entro no Desonra.
Com tudo o que ele pode ter de interessante, é um romance moderado, típico para vender e fazer filme — aliás atualmente em pós-produção, com John Malkovich no papel principal. Típico para vender por vários motivos: é sul-africano falando de sombras do apartheid, é história com trama do tipo "querer saber o que acontece no final", é o uso de ingredientes atraentes como a descrição de sexo com ninfetas.
Aparentemente, Diário... trata sem medo de questões de ampla história cultural, talvez já sem se submeter à "necessidade" de falar de apartheid por ser sul-africano — análoga à de falar sobre miséria por ser brasileiro...
Para ficar claro como é literariamente desinteressante o recurso "querer saber o que acontece no final", compare-se com obras que são lidas com gosto em qualquer página. Cito algumas. O estrangeiro, A consciência de Zeno, Memórias de Adriano... Pegue qualquer capítulo de romance do Machado de Assis. Pegue qualquer capítulo de Memórias do cárcere, de Graciliano Ramos. Leia a primeira página de qualquer conto de Jorge Luis Borges. Leia — exemplo supremo — O castelo, de Kafka, romance inacabado, o qual, portanto, não se pode ler com a intenção de saber como acaba.
Até mesmo histórias policiais podem ir além do simples suspense. Os romances de Rex Stout, por exemplo, são muito divertidos e podem até ser relidos...
No romance que li, nada desonra a narrativa bem cuidada, os personagens construídos com boa complexidade, as reflexões ponderadas que aparecem eventualmente. Somente as partes da ópera do protagonista é que são chatas, mas talvez isso seja pessoal. Enfim, trata-se de um romance ótimo para ler e esquecer.
Seja como for, Coetzee é um veterano e um talento bem-intencionado. E talvez venha a provar que ganhar o Prêmio Nobel pode ser não um auge, mas um "certificado comercial" que proporcione um verdadeiro começo.
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Link: resenha que escrevi sobre a sul-africana Nadine Gordimer, para o Caderno 2.
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