O réu
Em 1984, numa manhã especialmente severa, a inspetora Ana Lídia recolheu-me à sala da direção junto com dois outros garotos do colégio. Havíamos nos atrasado alguns minutos no retorno do recreio para as salas de aula.
Não me recordo do nome do diretor, um senhor de bigode espesso, mas ele já nos esperava, sentado à sua escrivaninha. Teria 50 anos então? Um menino de 11 não saberia precisar. Morreria alguns anos depois.
Tolerei o sermão com seriedade. Sempre tive um respeito militar pelo poder, mais propriamente pela experiência que os anos esculpem nas pessoas — embora isso não se estenda a uma mera submissão diante da autoridade.
O discurso deve ter durado cerca de cinco minutos. Foi entremeado de silêncios, que sempre podem ser a deixa ou uma nova pausa. Observava seu rosto, mantinha-se a tensão de que voltaria à carga. Não elevou a voz em nenhum momento, mas o sentido todo da repreensão parecia-me exceder bastante a natureza da falta.
Em certo momento, entendi que encerrara. Meus colegas estavam em silêncio, e o diretor não nomeou nenhum de nós em especial para iniciar as explicações. Certamente não percebi que seu último olhar calado, antes de nos mandar assinar o livro negro, era ainda sua tarefa de admoestação. Então comecei a falar.
A voz saiu branda, mas não fui capaz de proferir três palavras. O diretor interrompeu-me, agora sim zangado, instituindo que eu não tinha direito a réplica alguma. Ele parecia sinceramente surpreso por eu ter aberto a boca.
Fiquei paralisado pelo choque de me ver sem direito a defesa. Escutei quieto a prorrogação de impropérios que minha audácia lhe havia concedido. Os outros meninos talvez estivessem aliviados, agora à margem da repressão, sentindo-se menos culpados, menos perigosos.
A inspetora Ana Lídia, que presenciara tudo, demonstrou a meus olhos um certo remorso. Cumpriu burocraticamente a função de nos levar a assinar o temido livro negro.
Eu pensava que sentiria alguma solenidade no coração ao traçar meu nome após a famigerada lista de moleques que eu com muita justiça detestava. Pensava que sentiria uma intensa estranheza ao ser enfileirado com tantos indivíduos de fato reprováveis.
Mas a ditadura de quartinho do nosso diretor havia esfriado minha emoção. Na hora não entendi por quê, mas sei hoje muito bem que o lado “bom” da luta, o lado dos que sentenciavam os travessos, também tinha um vício talvez mais profundo.
Inscrevi o diretor no meu livro negro, esqueci seu nome e tornei-me apaixonado pela plena liberdade de defesa.
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