terça-feira, 25 de março de 2008

Como se defender da difamação

Felizmente não preciso falar do assunto por experiência própria (por enquanto). Vou comentar a brilhante introdução de Demóstenes em seu discurso A oração da coroa.

Estou começando o livro e não faço idéia da inocência de Demóstenes no caso que o fez elaborar esse discurso. O que importa é o permanente interesse de sua introdução.

Talvez esperássemos que um pensador se concentrasse nos fatos, nas leis, no raciocínio e desprezasse as preocupações retóricas ao discursar. Essa postura seria obviamente ingênua. (Assim como a atitude oposta — privilegiar a retórica sobre a verdade — é completamente obscena.)

O correto é focar no essencial. Mas há um detalhe: embora o essencial sejam os fatos, as leis e o raciocínio, é preciso um "truque" para fazer o ouvinte realmente focar nesses elementos — o tratamento retórico do discurso.

A introdução de Demóstenes contém exemplos bem ilustrativos dessa postura.

Primeiro ele mostra que ele e seu acusador, Ésquines, estão correndo riscos muito diferentes no processo. Se o adversário sair derrotado, perde somente uma causa. Se Demóstenes for derrotado, perde a honra.

Com esse argumento, ele mostra que, embora os jurados devam ser equilibrados, é necessário que tenham particular atenção à sua defesa. De certa forma, é como se lançasse mão da máxima in dubio pro reu, ou, para combinar com este blog, o "benefício da dúvida".

Num segundo ponto de sua introdução, parece que ouvimos o grego falar do bar da esquina, dos pátios, dos elevadores. Segundo ele, as pessoas são "propensas a ouvir com mais deleite a acusação do que o louvor em boca própria".

Essa observação é muito bem desenvolvida. Ele raciocina que, caso deixe de falar de si mesmo e de suas obras, fará parecer que não tem argumentos para refutar a acusação, e, por outro lado, se ficar falando de si mesmo, poderá ser visto como arrogante. Neste ponto, ele é direto: o fato de ele precisar falar de si próprio é culpa do acusador, que, abrindo o processo, obriga-o a isso.

Com esse argumento, Demóstenes objetiva fazer os jurados tomarem consciência da natural aversão que se tem aos que elogiam a si mesmos. Ele faz os jurados pensarem: "É verdade, não aprovamos os que elogiam a si mesmos. Porém está claro que esta é a única forma de o réu, aqui, se defender. Portanto, suspenderei momentaneamente essa aversão e ouvirei suas razões com isenção, sem o considerar arrogante".

Isso mostra como, em muitos casos, não basta falar a verdade, mas deve-se também preparar o interlocutor para saber ouvi-la.

quinta-feira, 13 de março de 2008

O miguxês de Guimarães Rosa

Evanildo Bechara foi meu grande professor de português. Na faculdade, devorei minuciosamente sua Moderna Gramática Portuguesa, que ainda assiste meus movimentos, aqui na prateleira ao lado.

Tem 80 anos e deu uma linda entrevista ao Jornal do Brasil. Como eu já poderia imaginar, aceita o miguxês, argumentando muito bem:

Eles abreviam muitas palavras, mas quem não domina as abreviações hoje em dia? Se você não sabe que MP é uma medida provisória, não consegue entender os noticiários. Além disso, esses jovens não se restringem ao miguxês, que usam apenas na internet.

Você não precisa escrever um miguxês por causa disso. Apenas aceite que é legítimo, embora restrito, do mesmo modo que todos os "dialetantes" devem admitir que nem todos irão compreender o que querem dizer...

Para não ver os desastres do noticiário, que talvez ele não tenha mais idade para suportar, diverte-se vendo o Pica-Pau. Mas seu golaço foi ao falar de literatura.

Autores como Guimarães Rosa, quando morrem fisicamente, morrem também literariamente. O Rosa não vai durar muito tempo, ele hoje só é lido nas universidades. Porque ele saiu dos trilhos, exagerou. (...) Quem me chamou a atenção para isso pela primeira vez foi o Graciliano Ramos. (...) Foi ele quem me disse: "O José Lins do Rego deveria escrever em uma língua mais comum, senão vai ficar esquecido".

Eu não vou comentar isso, somente dizer que Graciliano Ramos foi o melhor escritor brasileiro do século XX.

segunda-feira, 10 de março de 2008

Juno


Assisti, gostei e recomendo. Ou, como se diz hoje em dia nos fóruns depois de uma ótima mensagem: "Onde é que eu assino?".

Sempre fui muito crítico do tal "Oscar da Academia", mas desta vez mandaram bem ao premiar a Diablo pelo roteiro de Juno.

Seus méritos não se limitam aos "diálogos inteligentes" comentados pelo nhã-nhã de José Wilker na transmissão da Globo — a virtude real dessa história é a visão humana dos personagens, distantes de qualquer maniqueísmo. Num filme de forte apelo para adolescentes, é maior a proeza. Basta de heróis e vilões, fadas e dragões!

Podemos sentir o carinho de Diablo por cada personagem que criou. É, na verdade, uma Deusa, que parece tê-los soprado mandando-os seguirem sozinhos, para então poder reprová-los numa cena e aplaudi-los na seguinte.

Se quiser uma crítica mais detalhada e interessante sobre o filme, recomendo esta de Fábio Andrade na Cinética (assista antes de ler!).

Ele tem toda a razão ao dizer que Juno frustra os preconceitos de quem foi ao cinema pensando que veriam somente o filme "fofinho" da vez.

Fica melhor ainda por ter comparado com Pequena Miss Sunshine: porque não tem comparação. O filme da kombi amarela é um divertido pedaço de duas horas, mas com muitos clichês e artifícios manjados. Talvez eu o reveja, por curiosidade, em 2028. Juno é para rever várias vezes, recomendar aos amigos, mostrar aos alunos e dar como exemplo aos roteiristas de Malhação...

Mais sobre o maniqueísmo

Contra o maniqueísmo: esta é uma importante "cruzada". Um duro desafio, que me faz ficar ainda mais contente com o surgimento de Juno. Em breve escreverei mais sobre isso. Enquanto não escrevo, vou recomendando esta leitura aqui: O que há de errado com o maniqueísmo. O autor desse artigo podia ter simplificado um pouco, mas pelo menos deu o recado.

segunda-feira, 3 de março de 2008

Sangue negro


Paul Thomas Anderson fez alguns filmes excepcionais, como o vibrante Magnólia e o bonito Embrigado de amor. Desde este último, passaram-se cinco anos até sair Sangue negro (There will be blood).

Eu estava morrendo de curiosidade. Tanto que cometi a estupidez de ir ao cinema num sábado à tarde. Além de desembolsar a exorbitância de 36,00 (trinta e seis reais) para dois ingressos, só conseguimos nos sentar num local ruim, meio perto da tela.

Tive a sensação de que o nosso querido PTA guardou no bolso sua sensibilidade para personagens e situações modernas — e tentou fazer um épico kubrickiano. Os especialistas em cinematografia podem (tentar) me corrigir, mas música, fotografia e roteiro me fizeram sentir um cheiro de pastiche no ar.

O filme consegue "segurar" a gente por três horas, nem tive vontade de sair para ir o banheiro e esqueci um pouco o incômodo da posição na sala. Muitos podem considerar isso um belo elogio, mas, no meu caso, se estou com algumas caixinhas de Mentex, passo até mais tempo jogando Xadrez, sem lembrar da vida. Aliás, mesmo sem o Mentex, que engorda.

A que veio o filme? Daniel Day-Lewis mereceu o Oscar, mas seu personagem não me provocou nenhum interesse especial. Compare com os fortíssimos personagens criados por Anderson nos filmes anteriores: Julianne Moore, William Macy, Tom Cruise, Philippe Baker Hall e Philippe Seymour Hoffman em Magnólia, e os adoráveis Adam Sandler e Emily Watson em Embriagado de amor.

Agora é hora de superar o lustro perdido. Rezemos todos para que PTA não apareça em breve filmando um remake de Spartacus.