A peça Edifício London, do colega e conterrâneo Lucas Arantes, teve sua estreia cancelada por determinação da justiça, no começo de março.
O advogado da produção já estava preparando recurso contra a decisão, segundo algumas matérias informam. Difícil saber o tempo que pode demorar para que a justiça faça seu papel. Tenho na família um caso de relevância (atropelamento com sequelas) que já dura dezenove anos, e ainda deve demorar mais alguns. Por isso, não serei o maior crente na sua celeridade.
Mas, neste caso, a Justiça e os autos são tudo o que resta. O problema é exclusivamente jurídico. Não se trata de uma questão artística ou política. É o que eu procuro desenvolver abaixo para, em seguida, oferecer uma sugestão para que a questão possa ser resolvida.
O aspecto da questão é importante por dois motivos. Primeiro porque, para resolver um problema, precisamos entender sua verdadeira natureza. Segundo porque, se fazemos sempre uma alegação descabida, perdemos credibilidade para quando ela for realmente adequada.
Quanto à primeira razão: só podemos resolver um problema se sabemos o que é. Você liga o DVD e não obtém imagem: onde está o problema? No aparelho de TV, no aparelho de DVD, no disco ou no cabo que os conecta? Se o disco é defeituoso, mil protestos contra o cabo não farão a imagem aparecer.
Quanto à segunda razão: se ficarmos chamando de “censura” toda ação que, de algum modo, cerceia nossa liberdade de expressão, mesmo quando não existe censura, nós, principalmente como “classe”, já não inspiraremos tanta confiança quando uma censura realmente ocorrer: “Ah, esse pessoal do teatro sempre diz que existe alguma censura”.
Não existe “censura” neste caso. Basicamente, aliás, não existe censura: centenas de peças, livros, filmes são lançados todo mês. Fala-se bem do governo, fala-se mal do governo, fala-se mal da polícia, dos militares, dos ricos, das multinacionais, dos homofóbicos, dos racistas, fala-se mal da própria justiça, dos juízes, dos políticos.
A “liberdade de expressão” é um valor caríssimo a todos nós. Mas não podemos nos curvar cegamente a nenhum valor. Como se costuma dizer, não existe a liberdade de expressão para gritar “Fogo” num teatro lotado que não esteja se incendiando. Também não há liberdade de expressão para a calúnia. Não há liberdade de expressão para a apologia ao crime. Combatemos diariamente a liberdade de expressão de quem defende a homofobia ou o racismo, e assim devemos fazer. Portanto devemos ter a grandeza de, eventualmente, encararmos com sobriedade quando alguém questiona nossa liberdade de expressão, e tentarmos compreender suas alegações.
Então tentemos compreender a outra parte. O que ocorreu?
Pelo que me informei, a mãe de Isabella Nardoni alegou que a peça fere o direito de personalidade. Esse tipo de direito é tratado no Código Civil Brasileiro de 2002, em vigor desde 11 de janeiro de 2003, nos artigos 11 a 21. Procura defender a honra, a imagem, o nome, a vida e a privacidade de cada cidadão brasileiro. Idealmente, serve a todos nós. É uma lei de nosso país que não hesitaremos em usar a nosso favor quando a necessidade surgir.
Os direitos de personalidade do Código de 2002 são um avanço no que se refere à preocupação com a pessoa, com o indivíduo. Não vejo cabimento em crítica à lei em si. Contudo sempre há espaço para interpretar, a cada caso, como ela deve funcionar. Trata-se, portanto, de um caso de debate e decisão no aspecto jurídico.
Algumas pessoas, porém, vêm fazendo uma interessante crítica: por que o caso Isabella, seu nome e sua imagem puderam ser tão explorados em reportagens e documentários, com simulações do assassinato realizados com as mais diversas encenações e tecnologias, mas por uma peça de teatro não podem?
A resposta é que, do ponto de vista da mãe de Isabella, essas matérias tinham, ainda que comprometidas com uma versão, o objetivo de serem fidedignos à realidade, de forma a mostrar ao público “o que realmente aconteceu”.
No caso de uma peça de teatro, de imediato sabemos que o autor tem em primeiro lugar um compromisso com a poesia. Não preciso nem falar de Edifício London, a peça: se eu, como dramaturgo, tivesse criado um espetáculo com inspiração no caso Isabella, certamente teria desviado de qualquer versão oficial. Talvez eu desejasse jogar com hipóteses. Na minha peça, Isabella poderia ser uma suicida na primeira cena, e poderia ser morta por um bandido invisível na cena seguinte (alegação da defesa do casal que foi condenado por seu assassinato). É assim que os escritores “jogam” com a realidade, e revisitam tantas histórias, tantos fatos antigos, reais ou legendários. E é o que devemos fazer.
Sendo assim, a mãe de Isabella, gestora da imagem de sua filha, quer evitar que explorem (a peça teve marketing voltado para o caso, a partir do título) e, no entender dela, “deturpem” a memória de sua filha. Podemos não concordar com que isso seja feito, ou com o resultado, mas deve-se respeitar em princípio essa disposição.
Porém a peça precisa se defender e tentar entrar em cartaz. Não faço ideia dos termos do advogado da produção. Seja como for, eu ousaria sugerir uma conciliação (quem sabe ela seja pertinente) com a seguinte base: a mãe de Isabella retira a ação desde que o espetáculo assuma outro título, que não faça nenhuma alusão direta ao caso. Isso seria muito mais simples do que tentar brigar longamente na justiça para, por exemplo, tentar mostrar que Isabella tornou-se um personagem público e não pode se valer de certas prerrogativas (há esse tipo de exceção na legislação).
Pensei nessa possibilidade porque, nas reportagens sobre o caso, a própria produção do espetáculo informa que no texto não há nomes nem citações diretas. Ou seja, apresentando o texto à mãe de Isabella, e modificando o título, provavelmente todos ficarão contentes: a peça será apresentada ao público, como deve ser, e a mãe de Isabella não sentirá a existência de um abuso da imagem da filha, ou distorção da história oficial.
O importante é que a peça possa estrear o quanto antes, e que nós nos acostumemos a encarar com maturidade os processos que nos levaram à civilização e ao exercício da cidadania.